O CONTO DE UM ESPETÁCULO SEM GRAÇA - Roteiro

 







“O CONTO DE UM ESPETÁCULO SEM GRAÇA”

ROTEIRO 

DE 

ROSANGELA ATAIDE


























“O CONTO DE UM ESPETÁCULO SEM GRAÇA ”


1° ATO


INT: CIRCO - NOITE

Começa o espetáculo, malabaristas, domadores, trapezistas circulam de uma lado ao outro do picadeiro. O público alterna entre risos e espantos diante às apresentações dos artistas.

Assume o picadeiro um homem grande, com vestes brancas e penduricalhos coloridos em tons quentes e ao mesmo tempo com um toque de carta de baralho de tão magro e branco... eis o  narrador, O PALHAÇO, junto a ele,  uma criança, triste, com os olhos cheios de lágrimas.

PALHAÇO

Respeitável Público!

(...)

Em uma noite assim como esta bela noite, perdido em um Circo numa cidade esquecida, uma criança por volta de seus 5 anos encara um dos maiores desafios de sua vida. Eu poderia dizer, pobre criança, mas a criança apesar de sua baixa estatura e pouca idade, devo-lhes dizer... Contraria as expectativas e se mostra grandiosa, ela grita, ou tenta algo parecido, abafando o som do desespero, com as mãos para que ninguém ria de sua covardia. Eis a criança...

CRIANÇA - CLOSE UP – MÃOS DA CRIANÇA

Mamãe! Cadê você mamãe? Não te vejo.


PALHAÇO

A criança com seus olhos arregalados, bem mais arregalados do que é comum nas faces pueris, gira a cabeça ao redor do minúsculo corpo, o que lembra uma coruja, e com as imagens já turvadas pelas lágrimas que escorrem, nada enxerga adiante além dos borros coloridos, das pessoas e das luzes do espetáculo, o que poderia ser magnífico, se não fosse o caso de a  criança estar perdida, e assustada. Eis o horror... toma forma o desespero!

(...)

A criança chora. Na arquibancada as faces coram e os olhos ficam arregalados, pode-se notar algumas bocas abertas.

(...)

Adentra o policial, com aspecto de valente, olha distante a criança, circula examinando-a, e se preocupa. Intrigado se aproxima e enfim.

POLICIAL

Olá guri... qual teu nome garoto?

PALHAÇO

Ainda no pavor, a criança, cabeça baixa, balbucia entre as mãos a resposta e um diálogo tímido se inicia.

CRIANÇA - PLONGÉE

Alguém,  Senhor.

POLICIAL

Gira ao redor do corpo, não nota ninguém que possa estar à procura do menino.

(...)

Tudo bem... “Alguém”! É um belo nome, menino. Qual o nome de tua mãe?

CRIANÇA

Uma Qualquer, senhor.



PALHAÇO 

Ao fundo a arquibancada gargalha. O guarda incrédulo e já impaciente retruca. Porém ciente de que a criança não iria colaborar acaso ele fosse mais rude, aceita a resposta.

POLICIAL

Está brincando moleque?

CRIANÇA

Não, eu juro!

POLICIAL

Que nomes são esses? Algo está errado.

CRIANÇA

Por favor, acredite... Juro que não minto.

POLICIAL

Tudo bem, tudo bem... Não vou julgar! Só pare de jurar, jurar é pecado... É cada uma!

CRIANÇA

Como o senhor sabe?

POLICIAL

O quê?

CRIANÇA 

Que é pecado?


POLICIAL

Ora, Jesus disse.

CRIANÇA

Quando foi que Jesus disse?

POLICIAL

Venha comigo garoto, vamos achar tua mãe!


PALHAÇO

O garoto empaca, faz manha, teme que a mãe não o encontre, ele deve ser responsável embora perdido, cuidar de sua mãe lhe é a coisa mais importante neste momento, mesmo que acredite que seu medo seja algo secreto. O policial entende sua necessidade, ambos são meninos, mas insiste que a criança o acompanhe. 

(...)

O Palhaço com um riso cáustico na face não se perde.

(...)

Policial,  por favor se aproxime! 

POLICIAL

Pode vir, confie em mim. Sou policial, olhe minha roupa, este aqui é meu distintivo. 

CRIANÇA

Desconfiada

(...)

Mas o senhor não tem uma arma?

POLICIAL 

Tenho, olhe aqui! Esse é um cassetete.

CRIANÇA 

Isso não é uma arma de verdade, por que o senhor não tem uma?

POLICIAL 

Estamos em um Circo, garoto.


2° - ATO

PALHAÇO

O garoto assustado, mas já sem a cara de choro inicial, pega pela mão do policial com firmeza e os dois seguem à administração do Circo que é montada rapidamente de improviso no picadeiro. 

(...)

Rápido... Rápido! 

(...)

Agitação no picadeiro, música circense ao fundo, pipocas pululam ao ar. Risos, conversas, aplausos invadem a noite

Enfim o policial pega o megafone disposto sobre uma mesa improvisada e dispara:

POLICIAL

Atenção!

PALHAÇO 

Silêncio total entre picadeiro e arquibancada, todas as fáceis ficam impassíveis.

POLICIAL 

Sra. Uma Qualquer, favor comparecer à sala de administração do Circo. Teu filho, “Alguém”, te aguarda impaciente.

PALHAÇO

Ansiosa a criança sente medo e chora. Na plateia todos param estatelados por segundos e logo caem na risada, e começam os burburinhos...

PLATEIA (Intercut)

Quê?

Você escutou isso?

Deve ser piada!

Hahahahah!

Espera ele repetir, acho que escutamos errado.

Só pode ser piada, kkkk!

PALHAÇO

Após algum tempo adentra a sala improvisada uma jovem senhora em pavorosa e junto ouve-se o recepcionista.

MULHER

Meu filho, por favor, onde ele está?

RECEPCIONISTA (V.O.)

Boa noite! Qual teu nome, mulher,  e qual o nome de teu filho?

MULHER 

Meu filho se chama Gaius. Eu me chamo Marta.i

Adentra o recepcionista e com um sorriso disfarçado, o recepcionista retruca.

RECEPCIONISTA

Não temos nenhum Gaius aqui.  Há apenas um garoto que se diz chamar, Alguém, cuja mãe se chama, Uma Qualquer.

MULHER

É meu filho, eu juro!

RECEPCIONISTA

Jurando também? Só pode ser genético... Venha comigo senhora.

(...)

Esse é o policial Magalhães, e o garoto.

POLICIAL

Boa noite! Qual o seu nome, Senhora?

MULHER 

Marta Porto Pessoa. E Esse é meu filho Gaius Porto Pessoa.

PALHAÇO

A criança ameaça  ir de encontro a mãe,  porém o policial o retém  por um tempo.

POLICIAL

Nesse caso, preciso dos documentos da senhora e do menor.

MULHER 

Não estou de posse deles aqui.

POLICIAL

Então peça que “Alguém” os traga!

PALHAÇO

Risos entre os funcionários no recinto. Na verdade é liberado o riso... Todos riem,  menos a mulher e a criança obviamente. 

MULHER 

O senhor tem um telefone?

POLICIAL

A Senhora não tem um celular?

MULHER 

Não, mas sei o número de meu marido de cabeça. Preciso ligar para ele.

POLICIAL

Tudo bem... Toma aqui meu Celular. Mas não demore. 

(...) 

Quem não tem um celular? 

PALHAÇO 

O recepcionista ameaça uma resposta, porém o guarda o olha com reprovação. 

A Senhora faz uma ligação e rapidamente desliga, e é liberada pelo guarda à ficar junto à criança que chora desconsolada. Mas que serena, como toda criança serena, perto do corpo mãe. 


Ato – 3

PALHAÇO – Cont'd...

Após uma hora, a ponto de encerrar o espetáculo, um homem troncudo, suado e pequeno aparece na sala improvisada no centro do picadeiro.

Um enorme silêncio invade picadeiro e arquibancada,  um minuto talvez, como se “alguém” tivesse morrido e houvesse no recinto algum tipo de homenagem póstuma... mas, era apenas a presença do homem que se prostrara sob a luz de um canhão. O que lhe dava um aspecto horrível!

HOMEM - CLOSE SHOT 

Com os documentos em mãos, o homem os entrega, resmungando ao policial. Vira-se para a senhora sentada e exclama. 

HOMEM

Você é uma inconsequente! Quem te deixou trazer o garoto ao Circo?

PALHAÇO 

A mulher sem graça,  responde e dá-se início a uma discussão.

O Público, assiste a tudo atônito,  uns riem, não se sabe de nervoso ou de histeria, ou de graça mesmo .  Era um misto de qualquer coisa, menos do que devia ser... o esperado, alívio. 


MULHER 

Ele precisa sair, se divertir... Me desculpe! Juro não fazer mais isso.

PALHAÇO

O homem já vermelho, cuspindo entre as palavras altera a voz.

HOMEM

Jura? Desde quando “uma qualquer” como você, cumpre juras, sua retardada!

MULHER 

O senhor, meu esposo... está me envergonhando. 

HOMEM

Jura? “Uma qualquer” como você,  sente vergonha?

PALHAÇO

E... ameaça disparar um tapa na face da mulher. Porém se contém e apenas dá-lhe um chacoalham, rasgando-lhe a veste.

O garoto dispara em defender a mãe.

 CRIANÇA 

Não fala assim com minha mãe, não faça isso! 

PALHAÇO

O homem olhando nos olhos da mulher que permanece sentada e com medo. Sem olhar para o garoto diz.

HOMEM

“Alguém” falou alguma coisa? Devo estar ouvindo vozes,  só pode... 

(...) 

Cale a boca desse inútil!


MULHER 

Gaius, fique bonzinho meu filho.

CRIANÇA 

Mãe quero ir para casa, mas deixa ele aqui?

HOMEM

“Alguém” agora tem o que querer? Desde quando UMA QUALQUER irá me impedir de ir para minha casa?

PALHAÇO

O homenzinho olha para o garoto com o ódio estampado em face e lhe alcança um tapa no braço. 

POLICIAL

Opa... Vamos nos acalmar e nos respeitar aqui, Senhor... Qual é mesmo o teu nome?

HOMEM

Não  te interessa seu guardinha.

(...)

 Você pensa estar falando com quem? Seu abusado! 

POLICIAL

O Senhor está faltando com respeito a uma autoridade. Exijo teus documentos... Por favor! Me dê ou irei te encaminhar a delegacia agora mesmo.

PALHAÇO

O homem, Senhoras e Senhores, muito contrariado entrega um documento ao guarda que ajeita os óculos e em voz alta o lê...

POLICIAL

Ninguém Peçonha Pessoa! 


PALHAÇO

O Palhaço repete apoiando as mãos enluvadas uma sobre a outra

(...)

- Ninguém Peçonha Pessoa -

Ressoa no recinto o som estridente que o policial deixa escapar ao repetir mais uma vez o nome do já humilhado homem.


POLICIAL

Ninguém Peçonha Pessoa? 

(...)

O senhor está preso, por desacato, violência doméstica, e agressão de menor. Pego em ato de flagrante. Tem direito a um advogado e, a ficar calado.

PALHAÇO - Cont'd

No meio do picadeiro,  monta-se uma cela improvisada... eis o narrador, eis a sentença 

Senhoras e Senhores... Como podemos ver o Circo está em alvoroço, o som da viatura invade o espetáculo, no picadeiro, apenas as luzes da sirene se destaca, por um tempo. Até que o holofote foque no Palhaço no centro do picadeiro.

(...)

Eu o Palhaço,  visto a toga e tomo um martelo típico de um Palhaço em mãos e com tais ferramentas a mim, conferidas, faço a justiça do espetáculo. 

(...)

Respeitável Público! 

(...)

Em uma noite, assim como está bela noite, em um Circo qualquer,  perdido numa cidade esquecida...

“Alguém” salvou Pessoas!

“Ninguém” foi condenado!

“Qualquer” semelhança... será mera coincidência. 

Apaguem-se os holofotes, cerrem-se as cortinas.

O Espetáculo,  embora triste se encerra. Foi dada a sentença... Acabou a palhaçada!


FIM.


Disponível para leitura em pdf

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Os Despossuídos de Corpos

interno e final