Os Despossuídos de Corpos
Missiva
A você, que vou chamar de Pessoa, mas que é meu ator social diante à impossibilidade de dar-lhe nome, ou de fazer de ti um ator ficcional dada à realidade e ao fato de o ator ter a possibilidade de voltar de seus personagens, o que não lhe é permitido. Te faço Pessoa pela necessidade que tens de ser no mundo... Tal como você a claridade do dia me acorda quando às seis da manhã, eu em meu corpo e mundo de diversas cores, vejo o sol formar pela janela um halo, aquele halo onde nota-se a poeira baixando no ar se destacando entre a luz, e me atrevo a chegar mais perto e a observar meus dedos sendo iluminados por esses raios que as gotículas de água formadas pelo sereno da noite, criam cores... um arco-íris entre eu e a janela. E assim faço parte desse élan vida, e observo atenta o dia se dar... novo início. Mas em meu mundo, que diverge do teu, volto a dormir e sonho, sonhos impossíveis.
Alguns nasceram durante à noite, outros virão ao mundo no decorrer do dia. Alguns morreram, outros ão de morrer, a morte assim coma a vida está sempre ativa e em nada se opõe a vida, apenas à encerra. Espero não morrer enquanto te digo. Espero que você em seu mundo branco também esteja, sendo.
Nascemos a cada manhã, esplendorosos, novos seres e não sei se “serei” neste dia que se inicia, espero que seja. Digamos sim a vida.
Você Pessoa de pele morena, em contraste com seu mundo Branco esfumaçado, que te torna invisível, certamente também espera ser e continuar sendo como a luz que irradia, vívido. Respirar é importante ao corpo, ele se faz presente nesse mundo pelo respiro primeiro, aquele logo após sermos propelidos ao mundo. Mesmo embora antes dele você já existia... um corpo que ascendia no interno mundo dentro de uma placenta que um dia você rompeu e vieste a este onde agora o halo do élan vital te subjuga a persistir dia a dia no Branco da lida que te impede o respiro.
Quando vi o Branco de seu entorno , senti frio, um frio que toda paisagem branca nos remete e quando entre ele te vi, não sei por qual motivo, senti na minha carne o quente de seus dias e ardeu em mim, tua mão ferida, e isso me tocou, e me convocou a te escrever. Tua mão que nunca vi, me tocou e fiquei co-movida, diante essa fronteira de uma margem branca e quente dos calos indicadores de compromisso de dívida que não foste tu que adquiriste, mas o corpo, este teu, é território demarcado pelo Capital, desde o primeiro respiro, te manteve por herança condenado a sustentá-lo na base de um sistema que tu, desconheces.
Escrevo-te, por o imaginar menino correndo no pátio da escola com a capa de seus heróis de infância, com a linha da pipa solta nas mãos como se fosse um fio de vida com asas, feliz, mas que ao transpor a idade dos sonhos e delícias da infância, os perdeu diante o cansaço ou ainda, se possui o mínimo deles, dos sonhos de menino, há um interdito que o impossibilita o corpo no pátio livre, a pipa ganhando mundos... outros, as bolinhas coloridas de vidro que vibram ao se chocarem... não sei se você que pertence a este século, conhece o mundo de sonhos que te descrevo, mas nos parecemos um com o outro nesse ponto, também desconheço teu mundo e quanto aos sonhos não os tenho em demasia e quando me vem, sonho te trazer de volta ao primeiro respiro e dar-lhe um corpo demarcado somente pelo teu centro, teu estro de ser e estar no mundo. A noite passa negra e reluto com ela para não dormir, pois sinto na noite um silêncio que me faz refletir.
Quando te vi, embora não o tenha visto, pois um pixelizado por obrigação de sua tenra idade o cobria, te senti livre como eu mesma sou... é que os ávidos de liberdade se reconhecem. Talvez te soe estranho, te dizer livre quando és cativo do outro para suprir a fome ocre de teu corpo esmagado pelo cansaço, e explico... a liberdade a que me refiro seja talvez um delírio, um engano para que possamos suprimir a falta dela e nos mantermos vivos... não somos apenas corpo, somos antes de tudo potência, intenções, intensos em expressões de desejos, sublimes em ações, sublimes em nossos sonhos, e isso se chama fluxo de devires... em verdade, somos além corpo, por isso nos digo e dignifico livres. Mas o corpo ferido, desaba, se desabriga. E isso que te digo é um pouco sobre hospitalidade, mas para se ser um alguém que abriga, desejo, sonhos, sublimar, outro corpo... outra vida, é necessário a reapropriação de teu corpo, menino. Pois dilacerado o corpo repele outros corpos e podemos nos tornar hostis por medo de que o afeto nos dilacere mais e mais. Isso corta fluxos e quero manter um contigo, enquanto te digo.
Tento aqui, te dar dignidade, mas te faço personagem central sendo que você é a representação dos que ao seu redor, em seu campo social, reclamam sonhar e viver além dos cinquenta tons de uma vida em branco e invisível, tais outros corpos, sendo que alguns como já disse, ainda ão de vir, como você, cativos, quer seja por herança ou por necessidade de aprendizado para que de alguma forma, se mantenha em ser no mundo.
Chamo de territorialidade o que é teu por direito, direito ao corpo. Não falo por você, tens voz para tanto, te reapresento através da minha voz como um sim dado ao acontecido de existir e existes.
Pondero, ser escrava voluntária dessas palavras que te dirijo, a palavra é meu ato de liberdade, disse alguém e repito, assim como é para outros como eu, e é também ferramenta de dar ao mundo asas, a palavra aqui é tua. Palavras de sangue, vermelhas pela gana de meus dedos róseos, em te representar e trazer ao mundo em palavras que talvez ninguém nunca lhes digue. Penso, se você sabe como usar de sua liberdade quando ela se revela, após o descanso... eu já não sei, apenas deixo e assisto, às vezes tento pegá-la, mas ela me escapa fugidia. É que minha liberdade é limitada entre o que penso e cogito atitude para não fazer servil, ou pior, ser o que oprime ao outro que me lê e se cativa, pois a palavra que cativa se faz de certa forma opressora e assim, fascista. Isso é tudo que evito.
Me doeu saber que não consegue conduzir , e dispor de suas mãos por um cansaço tão extremo que mesmo em sua jovialidade não sabe onde seu corpo está disposto no espaço tempo. Faço uso das minhas até a exaustão, mas de forma dóxica por sentido de evidência ao que penso quando coloco em palavras o que sinto e quero representar com meu corpo e faço uso delas. Porém não se preocupe, o corpo desaprende a ser escravo das vaidades que o conduz, ou da exploração desassistida de um Estado que o guarde, assim como se desaprende tudo que aprendemos e o desaprender a ser usado como objeto, dói, como dói ser objeto e doer nesse caso significa abrir mão dos que nos aprisiona, mas mantém nosso alimento no prato, se isso de dor te fizer livre proprietário de sua vida, há de pagar o preço que pode se apresentar em forma de confronto, entre a necessidade de trabalhar pelo sustento ou buscar outras formas menos condenatórias e passar algum tipo, senão total necessidade. Doer o corpo, doer desaprender nos torna humanos, e isso é deixar de ser objeto, e seremos então livres... ainda que presos às marcas que ficam conosco pela vida.
Eu deveria te escrever de uma forma mais simples, mas acontece que estou sentada em um quarto noturno sendo invadida por fluxos de conhecimento que não me permitem, expressar de forma simples o complexo Branco que te abriga e que tanto me move a te dizer. Coisas tão sem sentido. Quando queria apenas soprar tuas mãos e beijá-las para sarar mais rápido, como toda mãe o faz por amor.
És um indivíduo em suspensão, interrompido, que faz greve de si e não se rebela ao outro. Sabe? Aquele que já não se sabe é uma página em branco... o ninguém... com inúmeras possibilidades de ser preenchido e se ser, mesmo que outro. Olhe para seu corpo, tente não espirrar, respire, se imagine entre as cores do arco-íris... que imaginar transmuta as coisas que na verdade já trazemos dentro... és um livre dentro, um ser íntegro, uma existência mesmo que despossuído de certa forma de seu próprio corpo que pulsa nas veias de teus braços de força descomunal, a tua inocência pedindo para sair do espaço branco que te confina. E tens Direito a isso.
Jamais curve tua cabeça de encontro ao peito, ou diga “sim Senhor” para além de teu pai ou se acaso cometer ato ilícito ao outro.
Maternar o corpo despossuído
Tudo se dá por uma visão poética das coisas que nos cerca. E ao adentrar no documentário Sertão Branco do Instituto Papel Social, disponível no Vímeo, mas que me foi apresentado por um amigo, que me levou ao personagem Pessoa desse texto a paisagem se dá, Branca! Após, uma fumaça reforça o signo de um lugar frio mesmo que o trabalho esteja evidente. É o signo que engana que começa a me atrair para aquela conversa com a realidade que o dispensa, cena após cena. A quebra do signo não quebra minha poética, mas a reforça em uma outra, embora triste do que imagino que seria... eu daria início a tal cena de trás para frente, não que o documentário nos mostre uma volta ao passado, mas por mostrar o retrocesso em que as leis nos garante como direito, não se faz eficaz, em um mundo de esquecimento. O signo que se apresentou após a quebra do primeiro, não diferiu a de um campo de concentração.
Então respirei fundo e pensei nas contrações uterinas de quando vamos dar luz a um ser no mundo. Onde as dores não se dão apenas no meu corpo, mas no corpo outro que precisa respirar e vir ao mundo, e existir... e temos enfim, o acontecimento vida. A placenta se rompe aqui, a vida que vem, já existe. Preciso sustentá-lo com meu corpo de um modo que ele possa existir de verdade e descobrir o mundo para além daquele Branco forjado e hostil, pela exploração e pelo domínio do mais fraco. O branco do lucro de uns, e morte em vida de outros, sustentado pela vaidade do consumo.
Me sinto em aleitamento, mas meu leite se torna ocre e não sacia a fome das necessidades do ser que quero dar alimento, para que tenha corpo. Ofereço minhas palavras como colo, colo de mãe que acalenta para que o filho durma, e descanse o corpo do estresse não do parto, mas do trabalho exaustivo que lhe condena à morte. Palavras, como Pietàs de um corpo invisível. Pietàs sim, mas não só as minhas, pois antes delas outros tantos falam em nome desses servos voluntários, inocentes, como no caso do próprio documentário que cito.
Tenho enjoo toda vez que recordo que ao estudar o servidão, vozes ecoaram dizendo que tais servos eram cativos por opção e por não almejarem um futuro melhor, por se sentirem confortáveis na posição em que se encontram. O que para meus ouvidos maternos soam como se um feto, se enrolasse no cordão umbilical, por desejo próprio ao se encaixarem para o nascimento. Algo está errado em tais falas. Para nascer o corpo é necessário impulso de vida e falamos de corpos nascidos. Eles venceram a disputa, a placenta, alguns o cordão no pescoço.
Peço que se calem. As contrações aqui explodem... um corpo nascido precisa tomar posse de si.
Todos nascemos cativos?
Eis uma questão a se pensar, recapitular, analisar em todos os seus pormenores e que porém não forma um conceito fixo. Ao menos não consigo fixar conceitos na surrealidade dos fatos que levam um adolescente a passar oito horas carregando centenas de sacos quentes de gesso, ou de 250 a 700 quilos por dia de placas do mesmo material.
Inicio este pequeno ensaio trazendo uma reflexão pessoal, onde mantenho um monólogo com o corpo servil e descubro nesse diálogo que as saídas que este corpo servil encontra, o leva a labirintos onde o corpo se perde. É necessário o grito e para o corpo cativo antes do grito, é necessário primeiramente dar voz, antes a voz, saciar a fome, antes a fome... aliviar o cansaço que o impede de erguer as mãos para saciar umas das necessidades básicas do corpo, e nesse caso falamos de sede. Um menino de 17 anos, não consegue um bom desempenho escolar por ter de trabalhar em um trabalho pesado por oito horas diariamente, seu pai não mais pode exercer tal função e garantir o sustento de seu lar por problemas na coluna, então temos um menino cansado por herança, ele herda do pai o trabalho que o condena ao mesmo estado físico, ou até a um pior se pensarmos nas doenças as quais aquele tipo de exploração o expõe.
Penso o Espaço Social... me questiono se o Campo de Poder pode abrigar aqueles que não tem direito ao corpo, ou sequer almejam seus direitos... o recorte de classe em que o Capital em nada favorece faz do servo um encarcerado sob nossas leis de domínio sobre o mais fraco? Entendendo que onde o Capital não favorece, ele explora o corpo e o condena ou ao encarceramento, ou a morte.
Me faço outrosquestionamentos... o Estado acaso condena esses homens à morte? É ele que decide quem vive ou quem morre? Sabemos a resposta?
Dado que não se exige das empresas que os exploram, salários dignos, assistência social e médica, moeda social, direito a aposentadoria por trabalho insalubre, entre tantas outras necessidades?
O Estado e suas instituições me diriam “um não.”, direito há, leis são exigidas, postas em vigor, etc...
Sabemos. Entretanto não temos acesso a realidade, ou não queremos ver, ou fica fora de nosso campo de visão, mas existem falhas graves nesse Sistema, algo claramente não funciona, algo não se exige, algo se aceita, algo fica subjugado e renegado e o renegado, encoberto, mas esse algo uma hora ou outra aparece entre o Branco dos dias e pesa, ao próprio Estado, pesa ao explorado e pesa aos olhos dos dominantes dos campos sociais ditos privilegiados, assim como em vários campos. E pesa ao aos bolsos, tanto do Capital, quanto do Estado quando esse corpo, sem garantias, adoece.
Existe uma questão que se refere à Classe Operária, ela me veio após assistir um Colóquio sobre Revoluções Moleculares, baseada na obra, A Revolução Molecular de Félix Guatarri... Se questionada a Classe Operária, não somente sobre o que precisa, mas sobre o que deseja, tal pergunta poderia ser respondida? Certamente, sim, embora a resposta sempre abrigue mais e mais respostas às quais os sindicatos e associações, quando existentes se estapeariam para responder pelos que representam. Agora reformulo minha questão e ela se fecha em uma resposta única, porém uma resposta à qual não encontro solução de se dar.
Se questionada o que deseja a classe escravizada, ou explorada o que responderiam? Certamente... o direito ao corpo. Obviamente isso exigiria reflexões acerca disso e certa pesquisa e aqui faço uso de um documentário citado... que expõe o estado de não Ser ao qual aqueles homens são submetidos, digo o direito ao corpo pelo simples fato de que esses homens explorados até a exaustão física e mental não terem domínio diante o cansaço, cansaço diante às necessidades físicas do corpo que não os pertence. Esses homens não tem o direito a querer nada, alguns já se condenam a morte aos cinquenta anos, como se viver até tal idade fosse o suficiente, ou não tem consciência de que tem direitos de quereres, direitos como por exemplo, um muito simples, como o de viver, o de não serem submetidos a trabalho análogo ao escravo. Porém isso vai além, excede ao domínio do Estado sobre o corpo do indivíduo por exigir gestão de amparo ao trabalhador que movimenta uma Economia no rés de um mercado desgovernado onde se vale o quanto pesa... e quanto pesa o direito ao corpo onde o necessário é a sobrevivência?
Penso a palavra Eco/nomia... assim, entrecortada e não pretendo pensar a palavra ecologia neste contexto, embora ela esteja impregnada aqui, em mim, em nós, em todo ambiente... Meio Ambiente!
Um corpo só, não comporta os livres... é necessário um grito de liberdade que ecoe ao mundo dos outros livres que não sabem que existimos, para que em uníssono sejamos voz no mundo. E a Lei, nos dê mais que ouvidos... nos dê Direitos ao nosso território corpo, e sejamos não um corpo máquina, mas sim uma Reserva Individual, com direito a não sermos invadidos por Exploradoras e exploradores do corpo alheio.
Respirar
Quando se nasce em um Ambiente contaminado, baixa-se a expectativa de vida e inicia-se o processo de luta de sobrevivência, em tal processo se o ar é irrespirável, ergue-se o pescoço para não sufocar, e se estapeia o ar, como em uma tentativa de destituir o possessor, ou de lutar contra a opressão que pode matar por asfixia. Essa é uma forma de reivindicar a vida, o ser no mundo, o corpo. Esses processo se dá por gestos livres. O corpo precisa gesticular, o corpo precisa de movimento. Expandir e se contrair livremente... dançar, cantar, andar, intervir nos espaços sociais, aprender a se expressar é dar sentido à vida. Isso muitas vezes se dá pela estética corporal que a Cultura nos traz, e aqui chego na questão política em que o corpo se insere como detentor de direito às políticas públicas que lhe garantam lazer. Se temos um ser despossuído de corpo, temos então, um corpo rejeitado, um corpo rejeitado se sujeita a servir e aqui temos algo contraditório... o corpo servil é um corpo que se sujeita à servidão, por crer que este, não serve para mais nada... é bom respirar! Meu corpo dói quando me alongo no Yoga, mas tal dor me garante mais e mais direito ao meu corpo. O meio cultural onde me insiro me apresentou tal estética do corpo, outros se inserem na dança, no espetáculo do teatro, nas academias... o trabalho também, não podemos negá-lo. A questão é quando se visa apenas ele.
Respirar limpa o corpo, um corpo sem ar é um quadro triste, e é triste ver um corpo sem moldura, um corpo sombra que a tristeza desrealiza de afetos, de desejos. Respirar é sublimar, e trazer à tona intenções e intenções impulsiona o corpo e um corpo movido por pulsões torna-se um corpo potente, que fala, escuta, que aprende, e se exprime livre, se autoriza a ser, se cura e se curar no caso do corpo servo exige entendimento de que se tem um corpo.
Respire... faz-se necessário! Reaprender a respirar pode aqui, significar a Pessoa deste a reapropriação do corpo que lhe foi tomado, pela cegueira do que é chamada de Justiça e do Estado.
Um corpo oscila no mundo e precisa de amparo.
A mãe morreu no parto.
Por: Rosangela Ataíde
Documentário:
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