"Feminicídio em Santa Teresa"




 Minha cara está em todos os jornais!


— Você viu lá?

Tinha um pixelizado horroroso que deixou escapar o cabo da faca que perfurou meu olho direito.

Conheço bem aquele cabo, eu afiava com afinco e lavava todo dia aquela maldita. Uma faca limpa - diga-se de passagem. Com ela, eu costumava preparar a carne para o picadinho do João. Ganhei de presente de casamento. Sabe esses tradicionais faqueiros de presente de núpcias.
— Sabe?

Ainda bem que a latrina estava limpa, ainda bem que a casa estava caprichosamente faxinada naquele dia. Embora isso tenha dado maior destaque ao sangue que esguichou de meu corpo durante a carnificina, fico orgulhosa de ter deixado a casa limpa, sem uma louça suja sequer... A não ser, aquela faca maldita!

Eu havia acabado de lavar o banheiro quando o João chegou muito silencioso e fedendo a catuaba. O João não era de bebida, também não era um homem silencioso. Mas não desconfiei de nada.

Agora minha cara está em todos os jornais... — Você viu? Logo na página policial onde o sangue escorre.

— Você viu lá?

"Feminicídio em Santa Teresa!"
e a maldita faca que eu mesma costumava afiar, muitas vezes delirando em planejar fazer picadinho do próprio João quando descobri que ele estava me traindo... Mas que deixei passar esperando a hora de me vingar em grande estilo. E no máximo lascava as unhas ao tremer de pavor só de imaginar tudo aquilo. Não me sai da cabeça, quantas horas passei lavando e afiando, aquela maldita faca, isso me fica martelando o juízo. E olha que estou morta ferida justamente nas ideias!

É que teve o Marcos sabe? Conheci na fila da mercearia. Nunca imaginei que ele jogasse futebol com o João aos domingos, eu sequer acreditava no tal do futebol, achava que era estorinha para sair com qualquer vadia, enquanto eu preparava o jantar aos domingos.

Mas o Marcos, me deu uma flor e me tocou a flor como se me despetalasse entre as pernas, na casa de máquinas do conjunto habitacional. O maldito ainda lambeu os dedos me olhando nos olhos... ahhh, aquele membro entre meus lábios, aquilo sim era loucura, chupar o pau de outro ao ar livre como se fosse uma cadela... Nem eu imaginava que tivesse capacidade para tal feito. Melhor vingança contra o João! Penetração nem teve, não tive coragem de ir tão longe e estava atrasada para buscar as crianças na escola, logo depois o João havia de chegar, alguém poderia acabar vendo e contar tudo. — Você sabe como é esse povo da vizinhança? Seria difamada, envergonhada e o João certamente me deixaria sozinha com os meninos para criar.

Mas não! Agora minha cara está em todos os jornais...
Você viu que coisa horrorosa?

Aos 17 quando conheci o João, ele me prometeu a vida limpa, cheia de amor!
Ríamos enquanto eu corava rubra, como a face rubra que estampa os jornais agora, só que menos. E ele corava também.

Naquela época toda noite eu atualizava a agenda com meus sonhos, sobre nosso namoro, depois o noivado, os preparativos para o casamento. Só parei quando vieram os meninos. Faltava tempo para escrever qualquer coisa além da lista do mercado, as contas do mês que quase sempre não cabia no bolso, os horários dos remédios dos meninos, etc...

— Quem vai cozinhar para o João? Quem irá buscar os meninos na escola?

Nunca mais vou ver o Marcos, nunca mais a loucura suja com o Marcos para me salvar daquele amor sujo do João. Tem coisas impossíveis de lavar. Até mesmo o meu sangue escorrendo pela latrina é impossível de lavar. Ele denuncia o fracasso de minha vida, o fracasso do João de me fazer feliz um dia. Um sonho em comum fracassado.

A sensação que tenho agora é a de se quebrar o salto numa rua de pedras portuguesas onde ainda resta um percurso longo... Será que após a morte a memória desativa? Ou vou ficar revivendo o Momento Morts eternamente?

De qualquer forma nunca mais as injúrias que começaram com a depressão pós parto do segundo parto. Nunca mais as tardes solitárias, nunca mais as noites vazias. Nunca mais as raras noites de carícias, os jantares caros nas datas importantes, as festas de família... Aquela hipocrisia toda que a gente assume como uma bailarina e que nos faz tocar a vida.

Uma infiel tarde sem orgasmo algum... notícia de uma tarde de futebol. alguém se gabando por tocar meu sexo sem gozo em meio a uma pelada. Que absurdo!

E eu morri bem antes daquela maldita perfurar meu crânio, e o João nem sabia que não precisava destruir a própria vida naquele ataque de ira. No final das contas acabei matando o João, ele morreu junto comigo.

Eu já sinto algo falhando em meus pensamentos agora, mas estou vendo minha vida inteirinha passando por eles como um raio x de memórias.

— Você viu lá?

Virei estatística...

Maldito pixelizado mal feito,

Maldita faca!

— O João não... coitado do João! O João nem sabe fazer picadinho.

rosangela a.

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