Conceito sobre Poética Contemporânea


 

A minha intenção aqui ao conceituar a poesia contemporânea é a de elucidar o que venho aprendendo, observando, anotando, não há nessa "crônica" nenhuma tentativa de me expressar como detentora de nenhuma verdade. 

Aconteceu de um dia que uma sobrinha me dizer... "Tia Rô, eu amo suas poesias, mas não entendo nada do que você diz!" 
Fiquei feliz com isso, Júlia ainda não havia sido contaminada pelo mundo, hoje como mãe e como psicóloga,  certamente ela entenderia minhas metáforas.
Então Júlia, não posso explicar minha poesia, ela adentra em cada um, de uma forma diferente, assim como sai de mim de um modo e numa releitura adentra de outra forma. A decodificação poética varia de leitor para leitor que a adapta a suas experiências,  épocas e meio cultural.
E foi pensando em Júlia, no meu filho e sobrinhos que resolvi escrever esses conceitos que quase viraram um ensaio. Quem sabe mais adiante?

Cultura e Poesia 

Para muitos a poesia é algo sem valor, e devo concordar em certo ponto, pois não creio que a poesia seja algo a qual se deva atribuir valor, seja ele econômico ou moral, mas discordo quando me deparo com a poesia que traz um fervilhar de emoções, como por exemplo o esvaziamento de nossas angustias, quer seja o sujeito poético, lírico ou empírico.  A poesia, seja intencional ou não, tem esse poder de revolucionar reformulando o pensamento e a emoção.  A poesia comove, entendamos  aqui o verbo comover, seus prefixos e sufixos: como/ver, co/mover. Seria esse o valor da poesia? Certamente sim e certamente mais que isso. Percebo que dar um valor a poesia é o mesmo que limitá-la. Estão me eximo disto nessa crônica.

A Poesia Contemporânea promove o verdadeiro encurtamento entre Arte e Vida, o que tanto buscou a Poesia Moderna. E é com o cotidiano que desfila, que dança, que dá  e tira o ritmo do dos dias e do destino... A Poesia Contemporânea é política, é anarquia, é ideologia, é desejo e sonho, é a Cultura em movimento, sendo assim é Arte..

Notamos isso no corpo, no comportamento, no que comporta o ser, trazendo em si uma redefinição Cultural e um quebramento com o socialmente aceito. Até aqui nada diferente das tentativas da Poesia Moderna, mas na Poesia Contemporânea esses enquadramentos se concretizam, porém com algumas peculiaridades.

A Retrotopia Poética 

Com um futuro utópico, que desde já fica transfigurado com as pandemias, a cultura "menor", o aquecimento global, o capitalismo que acelera as modificações no bioma em que vivemos, entre outros fatores, a escrita poética nos força de alguma forma a fugir para o passado mítico, quase que em busca de respostas, ou para quebrar com as respostas tidas como exatas até então, e também a recorrer a escrita cânone, para que possamos utilizar das normas cultas com maestria se assim desejar o poeta, ou para quebrarmos com ela, como quê, para sobrevivermos a liquefação da Cultura nos desfazendo das  antigas utopias de um futuro redentor, pois sabemos, ou acreditamos, perdemos a luta. Assim relemos o passado e transfiguramos o que escrevemos movendo o futuro de um provável abismo não com novas utopias, mas com a realidade que muitos de nós alcançamos, ou ao menos tentamos. Pois não buscamos salvar o mundo, mas salvar nosso tempo, nossa história, nosso legado, nossa Cultura. 

Porém isso nos traz um contraste positivo e negativo. Os mitos nos falam sobre de onde viemos e para onde vamos apesar de sua forma caótica, se pensarmos nos mitos de filiação como Adão e Eva,  ou seja, de onde viemos (do paraíso?) e para onde vamos (para a terra prometida? Mesmo neste atual cenário de guerras?), embora a intenção seja explorar e explicar esses signos sociais, não temos aqui um dilema caótico e retrotópico? Alguns poetas recorrem ao passado mítico, como a um resgate, mas sendo esse passado uma fantasia caímos no engano, como exemplo, fugir para as cavernas sendo que as cavernas eram lugares inóspitos à sobrevivência, onde a estimativa de vida era menor que a de hoje. Numa visão ecológica essa visão busca uma involução como evolução de consciência. Por outro lado, outros poetas buscam esse passado para transgredi-lo e promover uma sociedade mais consciente de sua realidade, buscando elucidar os enganos do passado,  como exemplo cito o livro A Bandeja de Salomé de Adriane Garcia que desafia os conceitos teológicos e machistas da Bíblia, trazendo outro tipo de conscientização, fazendo com que a mulher faça uma releitura mais elucidada sobre os conceitos bíblicos,  sua época  e costumes promovendo uma contextualização, mas que necessária para construirmos um futuro possível às mulheres.

Para a poética contemporânea é necessário  um enfrentamento e a quebra de preconceito do passado, e da atualidade não deixando de lado todo o processo para chegarmos até aqui, lendo e relendo os cânones, os clássicos e isso é fundamental pois só lendo uma literatura mais conservadora podemos entender todo esse complexo "contemporâneo" já que falamos de tempo, assim podemos estruturar esse mundo futuro com uma escrita verdadeira e mais elucidativa para a sociedade. Pois se o mundo é líquido, a literatura vai na contramaré em todo seu contexto histórico se pensarmos nos leitores do futuro e na conservação da escrita, assim retornar à escrita mais tradicional, não necessariamente para uso, mas para conhecimento, é  essencial para a conservação de nossa História, pois se vivemos em um tempo de liquidez esse líquido toma todas as proporções de espaço, "e por que não dizer... temporal?" no sentido Cultural em que está inserida a poética contemporânea. Ou seja há uma comunicação entre presente, passado e futuro. O passado com conhecimento, o presente com a vivência e o futuro com a meta de sobrevivência Cultural. Sendo assim é importante não vilanizar nenhuma estrutura poética quer seja ela mais popular de massa, quer seja ela pertencente ao que chamam de alta literatura mesmo que seja ainda tão padronizada, e é ainda importante enfatizar que se a intenção de alguns poetas é quebrar o digamos "ultrapassado"... Como isso se daria sem conhecê-lo?

As Tecnologias

A performance poética, como literatura de corpo presente, não é novidade da Poesia Contemporânea, mas neste tempo ela ganha nova roupagem e traz consigo a poesia aflorada, materializada num corpo, que pulsa, dança,  fala, se arrasta, grita chora e algumas vezes se desnuda até fisicamente, e esse desnudar visa a quebra de conceitos estabelecidos pela sociedade, dos seus preconceitos variados. Como isso se dá? É complexo, vai além de teatro e expressão corporal, uma amiga, atriz que fez uma performance baseada em uma poesia de minha autoria, formada em semiótica me explicou sutilmente que toda roupagem performática, se utiliza dos objetos disponíveis com os quais o ator vai se utilizar para sua atuação trazendo de dentro o que a de sistêmico naquela ação. Só esse caminho , já é bem poético na minha percepção de poeta. A performance poética é dada ao público,  nas exposições, museus, espetáculos onde o sarau performático é convidado e se apresenta,  há também os slams onde a voz das minorias se apresenta quase como num combate anárquico pelas causas sociais utilizando-se das orientações e da cultura vivenciada por esses artistas. A poesia do corpo, ou do corpo a corpo é uma das molas propulsoras da atuação da poética contemporânea, se vermos o corpo como uma tecnologia, um recurso para a poesia, temos a personificação desta, ao meu ver, isso é  extremamente visceral, onde podemos sentir o poeta ou o ator que no caso faz com que a poesia ganhe literalmente movimento, voz e ritmo. O Corpo e seus processos motores, amplia o ritmo poético ao incorporar o poema oferecendo uma transfusão de identidade,  com o poeta, o ator e o público. 

Assim como as tecnologias que abarcam toda a cultura contemporânea não deixando de fora a Literatura que se utiliza dos novos mecanismos tecnológicos com os ebooks, as próprias mídias, a IA, e a poesia visual que já engloba vários recursos como vídeos, ilustrações, a fotografia documental poética, mas que se atualiza com o NFT que atualmente ganha espaço em vários campos artísticos, aqui a poesia se encontra com a arte de descarte e da banalização sendo alcançada, se de alguma forma é o absurdo das pequenas formas onde se agrega grandes tensões o que buscamos, ele se enquadra perfeitamente, mas ao mesmo tempo nesta questão minha visão pessoal é  a da banalização da arte num movimento de contracultura que afunda com arte ao invés de reafirmá-la e a torna apenas uma ilusão criada pelo capital e sua necessidade de possuir e descartar. Recomendo neste ponto como leitura "O Esteticismo Niilista do Número Imaginário de Marcio Aquiles".

Composição 

Não é regra, mas o que podemos observar quanto a elaboração poética contemporânea é que nos utilizaremos de recursos como: 
Utilização de recursos antigos; seja mitológico, seja as de normas culta de escrita;
Busca de recursos inovadores, divulgação em canais próximos ao leitor como redes sociais,  canais de streaming,  o que acaba promovendo a democratização da Poesia formando novos poetas, em todas as camadas sociais e novos leitores;
E o recurso corpo, ja especificado.

O Sujeito Poético na elaboração da Poesia Contemporânea 

Nesse tempo onde as transformações humanas se dão em grande velocidade,  pudemos observar que na Poesia Contemporânea se objetiva a verdade, mesmo que implique uma ida ao passado, isso, lógico não se dá de forma homogênea, e há algumas diferenciações, como disse a pesquisadora Flora Süssekind à respeito da Literatura contemporânea onde está inserida a Poesia, há nesta literatura a presença do ser humano onde no caso o escritor chega a atualidade com uma escrita ligada ao tempo atual com a Literatura da Verdade que nos traz a política, o social com a visibilidade e representatividade da diversidade de mulheres, indígenas, negros e dos grupos LGBQIA+, o ecossistema, a natureza... E a Literatura do Eu, com uma escrita intimista, algumas vezes biográfica, mas visando as causas humanas como, espiritualidade, relacionamentos, psicologia, filosofia, cotidiano, o espaço que o escritor ocupa fisicamente, o que dá um formato no caso da poesia,  uma poética mais singular que seja condizente com a vida do poeta em si, com seus dilemas.

O fator de maior impacto certamente é o elaborar da vivência como base dessa escrita dentro de uma abordagem de metáforas e ironias, que objetiva agregar os fatores cotidianos já citado, das causas humanas e pessoais. Isso se dando numa escrita cada vez mais curta e ao mesmo tempo tensa, educativa, não sendo essas questões fundamentais, mas mesmo nos poemas longos podemos observar essa quebra com a estrutura poética mais cânone. Além desse encurtamento dos versos e dessa quebra com o convencional, é comum encontramos uma poesia que nos faz questionar o que está sendo oferecido ao leitor, muitas vezes em formas semióticas de linguagem, principalmente quando visual, com seus signos ocultos, e isso faz com que o leitor de poesia busque também um bom entendimento de seu tempo e de seus sentimentos e emoções, ou seja, a Poesia Contemporânea, não deixa o leitor à deriva, ela o convida a navegar com o poeta em sua singularidade,  alcançando de certa forma uma similaridade, uma identificação,  poeta/leitor/poesia e essa repetição vai se dando a medida em que essa tríade vai se compondo enquanto arte fundamental... Lembra que no inicio afirmei sobre o encurtamento arte e vida? Não é exatamente isso, quando analisamos a poesia como forma Cultural, unindo,  sociedade,  ou leitor à poética? Lógico que isso se dá de forma majoritária ao próprio escritor, mas que essa aproximação de arte e vida afeta o meio em que se vive é inegável e notamos isso claramente na poesia seja visual que ajuda o observador até mesmo a se deslocar,  ou ainda no micropoema que invade as redes sociais, em mídias como Instagram, fazendo com que o leitor tenha um encontro quase que diário com a metáfora poética. O que acredito eu reformulando, educando a percepção deste observador... Ou seja, o estreitamento Arte e Vida. 

Não poderia finalizar esse texto sem citar a narrativa de Milan Kundera em o Livro do Riso e do Esquecimento:
Quando um dia (isso acontecerá logo) todo homem acordar escritor, terá chegado o tempo da surdez e da incompreensão universais.  
Acho que essa fala ja especifica bastante a falta de utopias futuras. Mas cabe ao escritor a coragem de desafiar essa surdez, se reinventando e sua fala. 

Rosangela Ataíde 

Fontes: Regina Dalcastagnè - Literatura brasileira contemporânea: um território contestado. Antônio Candido - Literatura e Sociedade. Marcio Aquiles - O Esteticismo Niilista do Número Imaginário. Zygmunt Bauman - Retrotopia / Ensaios Sobre o Conceito de Cultura.

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