Incorpóreo




o afeto ganha dimensões à medida em que cresce, ganha olho, boca, esôfago, coração 

...o afeto se organiza, para desorganizar...

— onde está minha cabeça?

— estou com taquicardia.

— tenho borboletas no estomago!

— libélulas saem de minha boca...

— minha pele, sinta só... é arrepio!


afeto é um sem corpo.

nem sempre o que nos afeta é bom, tem afeto alvo de alguma coisa, mas aqui falo do afeto que dá  forma às pulsões, aos sentimentos...

você não toca o afeto, é sobre sentir que te falo, mas acontece algo sobre o sentir... pode ser que afetado pelo seu toque, que afetado ocorra o encontro, corpo/afeto.


e o afeto se espalha, se espelha, cai dentro, mata a sede, se afoga, desertifica, canibaliza, é um roubo na calçada pública  mais agitada da cidade, quando do nada um lábio toca o teu, ou uma mão segura a tua e caminha junto.


sente-se no centro de uma sala escura em meio ao holofote... afete por suas falas, se afete por aquele que às ouve, chame alguém  para se sentar ao teu lado e olhem-se nos olhos, por uns instantes...


— quem é este que me olha,  quem é este que eu miro?

— quem sou eu naquele olho?

— quem somos nós um para o outro?

— quando me olhas, consegue alcançar meu dentro?


...então que o afeto ganha palco e brilha como estrela mesmo que não haja drama em cena, logos, códigos de acesso. apenas o olho no olho, algo como um "sério", quem vai rir primeiro?  ou chorar de desespero... com alguém que há pouco estava distraído na plateia, querendo sair e voltar para casa, e talvez tenha o diálogo, o interno, o solto, aquele que faça o outro indagar sobre si, o solto ao ar na fala que invade o instante... o desejo alí pulsante e a gente quer correr, mas não sabemos se um para o outro, ou na direção de nossos alicerces...


o afeto passa rápido por nós.

na maioria das vezes...

mas se acaso afete de verdade, se instala  e quero ver quem o despeje. o afeto demora a sair, é uma coisa insistente, generosa sem limites, nada guarda, tudo o que tem quer dar. "para quê uma casa?", "para quê um carro?" o afeto não quer saber de nada disso, não usa relógios, dispensa as chaves, o que importa ao afeto é afetar, é ser afetado. e crescer e virar uma bomba de afeto que a gente transforma em chocolate meio amargo com café carioca, no fim de tarde.


tem que ser algo maior... muito maior que desejo ou simples força de vontade para que ele acabe... e não adianta ter raiva, raiva não ameniza o afeto, só  o torna incompreendido, abandonado num canto onde a gente não consegue vê-lo, então o afeto sai de seu canto, vai lá e te diz, "calma" e te afeta mais, caramba!

certamente só o amor pode com esse afeto.

então que...

e mesmo afetado, sob a luz do holofote, você precisa desviar o olhar,  se por de pé, agradecer ao público, não olhar mais aquele par de olhos, baixar as cortinas, apagar as luzes e sair pela porta detrás do Teatro 


...de volta ao seu amor.

mesmo que ele já não o afete, você sabe, o afeto que houve nesse amor de espera, foi tão o melhor de todos! que você quer ressuscitar ele, desfibrilar o centro dele, se acomodar em seu ventre... é aquele amor Clarice, ao qual se corre, depois da hora mais perigosa do dia, quando os ovos partem e suas cascas ferem as gemas e você se perde no bonde ao notar a gema branca dos olhos de um cego


e você precisa correr para aquele abraço que apaga o perigo de teu viver, como se soprasse a flama do dia.


só  esse amor te faz esquecer aquele afeto que pouco antes esteve centrado no teu olho, sob a luz de um holofote.


rosa.

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