Passarin - Conto
"estou retirando as cascas
as lascas que atam minha pele às feridas
como quando descasco alhos roxos
são lascas finas
difíceis de retirar as camadas desse tecido
quando e onde entranhado o corpo fica
curiosamente, guardo cascas de alho
é um ritual do qual não me dou conta
meio bruxa, meio louca, meio má
estou em busca da minh'alma
percebo as do meu redor
sei quando são boas, quando não
quando não há...
mas a minha me escapa a essência
por isso retiro as cascas
as lascas e quase as devoro
feito criança que as come
pretas lascas dos ralados joelhos
há tecidos artificiais
finos, fibrosos
cola de papel na palma da mão seca
tecido, teia, traços
há quem leia
mas não me leio
estou retirandos as cascas
as lascas de meu corpo
em busca da alma que me habita
e me importa saber se sou boa, se sou má
talvez me revire cebola
hei de chorar
talvez alcance a ancestralidade
nos veios espessos de minha árvore
talvez escorra por entre seixos
ao me derramar sem tais cascas
e não encontre essa habitante
fera, furia, ferida que me tempera _a carne que sou"
rosa a. poema de 22/09/24
Diante uma parede branca, lixa em punho, nivelando cada relevo de massa corrida, depois passar todas as camadas de tinta necessárias para que a parede fique perfeita eu penso no tempo em que aprendi a nivelar as estruturas. Não sei dizer em minha vida, em qual camada estou, mas isso não é sobre pintar paredes... sigo para cozinha onde lavo as mãos ja detonadas pelo pó branco. Na volta ao passar pelo corredor, notei ao chão um pedaço de carne, me abaixei e achei tão estranho, parecia uma rã sem pele, encolhida, meio gosmenta, fiquei intrigada... "um alienígena?", um bebê, certamente algum pássaro devia ter deixado escapar o bebê do bico, e como não podia devolvê-lo, o lancei longe no quintal, tive pena da mãe, seja lá que bicho fosse aquele pedaço de carne, teria uma mãe!
Segui ao banheiro do escritório, estava apertada para o xixi, foi quando notei, estava sagrando... minha mente voltou para antes do pedaço de carne, quando senti algo gelado me escorrer pelas pernas, depois para bem antes... eu na procura do que fazer, eu com medo de fazer, eu alí sentanda no sanitário que sempre fiz questão de manter o máximo higienizado, onde eu na verdade estava urinando sangue... agora estava feito, e eu era uma grande merda por ter feito, ou assim, me sentia.
Houve todo um processo até que meu corpo entrasse em choque anafilático... sobrevivi? Assim se deu o aborto, provocado por substâncias e procedimentos quase xamanicos, uma luta travada por três meses que não direi como se deu. Passei por dois hospitais, em ambos fui hostilizada, nunca havia sido até alí, ao menos não tanto.
Quando acordei do coma, olhei ao meu redor e como num castigo, estava numa ala de maternidade do Hospital Universitário Antônio Pedro, mães amamentavam seus filhos, eu me encolhia numa poça de urina e sangue jogada num colchão azul, era para ver... era para sentir... era para ser a escória com aqueles olhares de reprovação, até que veio a pergunta "cadê seu bebê?", "comi!". Decidi não ter pena de mim, dedidi não pensar em bebês, principalmente no que não tive. Pensei em Rodrigo, em como ele se sentiria se soubesse.
Conheci Rodrigo em algum ensaio de alguma banda de garagem, não me lembro qual, mas começamos a ficar, após esses encontros não marcados. Ambos tinhamos dezoito anos, a primeira vez tive medo, Rodrigo morava com um amigo em uma kitnet e estávamos os três assistindo um filme e fumando maconha, não consigo lembrar qual filme, mas lembro, eu e Rodrigo numa cama de solteiro e o amigo, que não lembro o nome, num colchão jogado no chão, até que Rodrigo começou a me apertar os seios por debaixo da coberta, ele me apertava o corpo todo, cintura, mamilo, me puxava para ele, era gostoso sentir o corpo dele, era quente, me aquecia, a mão dele descia até encontrar meus pelos, ele me penetrava com dois de seus dedos, eu gostava, me contorcia, eu gemia, Rodrigo era silencioso, até que o amigo dele se manifestou "Deixa eu participar dessa brincadeira aí?", Rodrigo pergunta baixinho no meu ouvido "Você quer?", "Não.". Rodrigo diz que não para o amigo que sai para se punhetar no banheiro. Rodrigo me penetra na cama, esqueci do medo do amigo dele, me dei a Rodrigo.
Nada tirava de minha cabeça a certeza de que para Rodrigo eu era uma vadia, por ter transado com ele, na frente de seu amigo, mas mesmo assim Rodrigo insistia em querer me ver com mais frequência e o que era ao acaso, passou a ser encontros marcados. Eu tinha a certeza que ele só queria fazer sexo comigo, mesmo após ele ter me levado para conhecer a mãe dele. Nunca passou por minha cabeça que ele pudesse estar apaixonado, assim como eu estava, então chego a conclusão que nunca dei a Rodrigo a opção de escolha, eu que decidia as coisas por ele. Ele acolhia minhas decisões e eu pensava, que ele só o fazia para poder continuar fazendo sexo comigo.
Então que sem nenhuma estima, fui conhecer dona Fátima, uma mulher trabadora ao extremo, honesta, vaidosa, cheia de vida, cheia de conhecimento e que ainda ajudava a cuidar do neto, sobrinho de Rodrigo.
"Oi!"
"Olá, senhora Fatima."
"Me faz um favor?"
"Depende"
"Fala para Rodrigo voltar para casa?"
"Já falei, mas ele não quer agora, disse que primeiro vai parar de fumar"
"Maldita droga!"
Fiquei quieta.
"Menina você toma qual anticoncepcional? "
Inventei um nome qualquer... eu não tomava, eu não me precavia, nem Rodrigo, a gente só ia como veleiro sem rota e sem leme, como quem pedala de olhos fechados sem segurar o guidão. Contraconceptivos me causavam dores de cabeça e eu não suportava dores.
Dona Fátima me olha antes de minha primeira e ultima visita... "se duida menina, com esse quadril de parideira você não deve se descuidar", nada ela disse a Rodrigo que a olhou com ar de reprovação. Fiquei assustada, fazia uns dias, sentia enjoos enquando preparava o almoço.
Em casa éramos eu e meu pai, nos fundos uma tia e sua família. Não demorou para ela perceber que meus seios estavam crescendo e reparar nos enjoos, "menina, você está grávida?", "Não, tia", "Menina, você ainda é virgem?", não respondi a pergunta direta, fugi dela, queria fugir do mundo, meu chão sumia abaixo dos meus pés... o que meu pai iria fazer? Rodrigo nunca mais iria querer me ver! Eu estava perdida. E decidira por mim e por Rodrigo que nunca mais nos veríamos.
Até que naquele dia, em que eu estava jogada naquela poça de urina e sangue abri os olhos e me deparei com o olhar de Rodrigo... não conhecia aquele olhar dele, era diferente de todos os que ele até então havia me dirigido, havia mágoa neles, embora conservasse um tanto de amor. O mesmo amor que vi ao nos esbarrarmos dois anos após, no shopping em que ele carregava uma bolsa de bebê e empurava um carrinho com uma criança, enquanto sua provável esposa que olhava a vitrine, adentrou a loja. Tentei disfarçar que o havia visto, mas Rodrigo fez questão, sabe? E um "oi" seguido de "como vai você?" e apresentações à sua esposa e filho se deram e a notícia de que outro bebê ja viria ao mundo em cerca de 6 meses. Tudo esfregado na minha cara. E segui rumo ao meu compromisso de João de Barro cheia de tubos com projetos arquitetônicos para abrigar famílias como a de Rodrigo.
Anos depois me deparei com Rodrigo no mesmo shopping nas escadas de acesso ao estacionamento. Ele estava acompanhado de um rapaz, os cabelos já eram grisalhos, me olhou firme e me virou o rosto, como se não houvesse me reconhecido.
Durante meu aborto feito com a ousadia e desespero de menina, tive que sofrer uma histerectomia e rezar para não ser presa, pois o médico com os olhos lagrimejando e face corada disse que denunciaria. Nunca soube o que é embalar um bebê meu, mas lembro cada detalhe daquele filhote de passarinho.
Rosa Ataíde
"Conto?" , e fotografia.
Um senhor conto! Estende, amplo tapete para a discução do aborto. E aqui, me esquivo de opinar... até pela complexidade de ser contra mas a favor da não natalidade então... eu sei... complexo, eu disse! Mas! Como conto, atendeu as expectativas: uma entrega honesta e pungente, um murro na boca do estômago.
ResponderExcluirLeonardo, primeiramente obrigada por teu comentário. Também não me posiciono, mas são coisas que nos acontece, principalmente quando se é jovem. Muito grata mesmo! Bjo.
Excluir